quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Solidão não rima com inclusão...

Profº José Pacheco - Escola da Ponte


Nunca será demais voltar ao assunto, para lembrar que, apesar da teoria e contra ela, a realidade nos diz que, desde há séculos, tudo está escrito e tudo continua por concretizar. Nunca será demais falar de inclusão. Nunca será demais lembrar que os projetos humanos carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar, conviver com a diversidade.


A chamada Educação Inclusiva não surgiu por acaso, nem é missão exclusiva da Escola. É um produto histórico de uma época e de realidades educacionais contemporâneas, uma época que requer que abandonemos muitos dos nossos estereótipos e preconceitos,que exige que se transforme a “escola estatal” em escola pública – uma escola que a todos acolha e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender. Basta que os professores se interroguem. É dessa capacidade de interpelar as práticas que emergem dispositivos de mudança, não apenas nas escolas, mas em todos os espaços sociais onde ocorrem aprendizagens.


Os obstáculos que uma escola encontra, quando aspira a práticas de inclusão, são problemas de relação. As escolas carecem de espaços de convivencialidade reflexiva, de procurar compreender que pessoas são aquelas com quem partilhamos os dias, quais são as suas necessidades (educativas e outras), cuidar da pessoa do professor, para que se veja na dignidade de pessoa humana e veja outros educadores como pessoas. Sempre que um professor se assume individualmente responsável pelos atos do seu coletivo, reelabora a sua cultura pessoal e profissional... ”inclui-se”. Como não se transmite aquilo que se diz mas aquilo que se é, os professores inclusos numa equipe com projeto promovem inclusão.


Aos adeptos do pensamento único (que ainda encontro por aí...) direi ser preciso saber fazer silêncio “escutatório”, fundamento do reconhecimento do outro. Que precisamos rever nossa necessidade de desejar o outro conforme nossa imagem, mas respeitá-lo numa perspectiva não-narcísica, ou seja, aquela que respeita o outro, o não-eu, o diferente de mim, aquela que não quer catequizar ninguém, que defende a liberdade de idéias e crenças, como nos avisaria Freud. Isso também é caminho para a inclusão.


Aos cínicos (que ainda encontro por aí...) direi que, onde houver turmas de alunos enfileirados em salas-celas, não haverá inclusão. Onde houver séries e aulas assentes na crença de ser possível ensinar a todos como se de um só se tratasse, não haverá inclusão. Direi que,enquanto o professor estiver sozinho, não haverá inclusão. Insisto na necessidade da metamorfose do professor, que deve sair de si (necessidade de se conhecer); sair da sala de aula (necessidade de reconhecer o outro); sair da escola (necessidade de compreender o mundo). O ethos organizacional de uma escola depende da sua inserção social, de relações de proximidade com outros atores sociais.


Também é requisito de inclusão o reconhecimento da imprevisibilidade de que se reveste todo o ato educativo. Enquanto ato de relação, ele é único, irrepetível, impossível de prever (de planejar) e de um-para-um (questionando abstrações como “turma” ou “grupo homogêneo”), nas dimensões cognitiva, afetiva, emocional, física, moral... As escolas que reconhecem tais requisitos estarão a caminho da inclusão.


Continuamos a negar a diversidade. A “crise da escola” é a dificuldade de lidar com a diversidade. Mas acredito ser possível obter mudanças efetivas no comportamento e na cultura humana, questionando a estrutura das formas de educação que praticamos. O desenvolvimento de atitudes de respeito, solidariedade e preservação da vida pressupõe escapar de formatações e superar visões fragmentadas. Pressupõe aprender a ver as relações entre as coisas, os impactos coletivos gerados por ações individuais e vice-versa, ver os padrões de dominação e exploração presentes em nossa cultura. Que esta asserção esteja presente na elaboração de políticas públicas e influencie positivamente os tecnocratas que controlam o sistema educativo, bem como as instituições de formação de professores. Porque a lei vigente cria obstáculos à relação e ao estabelecimento de vínculo, comprometendo a inclusão. Um exemplo: se é sabido que aprendemos com quem sabe algo diferente daquilo que nós sabemos e que pouco (ou mesmo nada) se aprende com quem tem a mesma idade, por que razão as séries e as turmas são predominantemente constituídas por jovens do mesmo grupo etário?


Urge partir daquilo que já existe nas escolas e que resulta, num projeto feito num refazer-se contínuo, sempre em fase instituinte, avaliado em múltiplas leituras e releituras. Urge reformular terminologias: desenvolver trabalho COM e não trabalho PARA; substituir o OU pelo E; trocar o EU pelo NÓS... Urge redefinir o perfil do mediador de aprendizagens, considerar o aluno como participante ativo de transformações sociais, reconfigurar práticas escolares, desguetizar as escolas. É possível passar do absurdo à utopia, identificando causas profundas de fenômenos como a exclusão escolar e social, que não são inevitáveis.


A experiência da Escola da Ponte mostra uma das formas possíveis de promover inclusão escolar e social (mas não é uma fórmula). Ao longo de mais de 30 anos, verificou-se que a colocação de crianças com necessidades específicas junto dos ditos normais não era medida suficiente para se fazer o que se designa por inclusão. A inclusão não se processa em abstracto, mas passa por uma gestão diferente de um mesmo currículo, para que os alunos não interiorizem incapacidades... e para que se cuide da inclusão do professor.


Na solidão do professor em sala de aula não há inclusão. Nem do aluno, metade do dia enfileirado, vigiado, impedido de dialogar com o colega do lado, e a outra metade, frente a um televisor, a uma tela de computador ou de celular... sozinho.


A inclusão depende da solidariedade exercida em equipes educativas. Um projeto de inclusão é um ato coletivo e só tem sentido no quadro de um projeto local de desenvolvimento consubstanciado numa lógica comunitária, algo que pressupõe uma profunda transformação cultural.